• “O Brasil tem o maior sistema público de transplantes de órgãos do mundo”, garante coordenador da ABTO

    Tadeu Thomé (ABTO)
    Tadeu Thomé é vice-coordenador do Departamento de Coordenação em Transplantes da ABTO. (Foto: Jorge Soares/ABTO)
    Jose Renato Junior | 31 out 2023

    O sistema de transplante de órgãos no Brasil é exemplo para outros países mas está longe de atender as demandas da população. De acordo com Tadeu Thomé, vice-coordenador do Departamento de Coordenação em Transplantes da ABTO, no caso do transplante renal, que é o mais numeroso no país, realizamos apenas 36% dos procedimentos que seriam necessários – e no caso de outros órgãos, com menor durabilidade, o percentual é ainda menor.

    Recentemente, o transplante de coração do apresentador de TV Fausto Silva, o Faustão, trouxe a pauta do transplante de órgãos de volta ao debate público. Se, por um lado, a importância da doação voltou a ser assunto, houve também muita desinformação, sobretudo a respeito de como funciona a lista de transplante – houve suspeitas e acusações infundadas de que o apresentador teria sido favorecido em relação a outros pacientes à espera de um coração.

    Em entrevista para FUTURE HEALTH Thomé, que também é coordenador do Programa de Transplantes do Hospital Sírio-Libanês e atua há mais de 20 anos com transplante de órgãos, pondera que além dessa conscientização coletiva, promovida por meios de comunicação, é necessário investir prioritariamente em qualificação dos profissionais de saúde que conversam sobre as famílias no delicado momento de decidir sobre a doação.

    FUTURE HEALTH: Qual é o cenário atual de transplantes no Brasil? Qual a diferença entre quando você começou e agora?

    TADEU THOMÉ: Há 20 anos, as doações e transplantes ocorriam de maneira amadora, graças a esforços pessoais médicos, enfermeiros que desbravavam essa atividade nas regiões em que atuavam. Não havia uma sistematização, uma profissionalização em relação ao transplante de órgãos. De lá para cá, avançamos em vários aspectos e hoje há uma política nacional de doação de órgãos bem estabelecida. E trata-se, de fato, de uma política de estado, que não fica ameaçada por mudanças de governo. Embora isso esteja consolidado, o processo continua.

    E é por isso que, nos últimos 20 anos, aumentamos quase 300% o número de transplantes de órgãos. São quase 9 mil procedimentos por ano, fazendo do Brasil um dos países que mais transplanta no mundo. 

    FH: O que o levou a se especializar em transplantes?

    TT: Tem uma curiosidade antes mesmo do início de minha trajetória: antes mesmo de cursar a faculdade, quando tinha ainda por volta dos 17 anos, fui trabalhar no Banco de Olhos de Sorocaba (SP). E lá eu fazia extração de córneas de pessoas que haviam morrido e se tornariam doadoras – importante pontuar que o transplante de córnea não exige morte cerebral e o tecido pode ser transplantando até 15 dias depois da morte cardíaca. Esse foi meu primeiro contato com transplantes, antes mesmo de ingressar na faculdade de enfermagem.

    Quem se profissionaliza na área da saúde pode se especializar em variadas áreas. No meu caso, comecei a ter interesse pelo nível de atenção terciário, quando a vida do paciente está em risco. Dentro desse nicho, me dediquei ao atendimento de casos de alta complexidade, que necessitam de atendimento especializado, invasivo, rápido e de urgência. O transplante de órgãos se enquadra nesse nível de atendimento em saúde. 

    Comecei trabalhando em pronto-socorro de trauma, com hemodinâmica, e aos poucos fui tomando contato com o transplante de órgãos. O que é fascinante no transplante é que não importa o nível do hospital, da equipe da enfermagem, dos médicos: posso ter o que há de melhor nesses aspectos, mas se não tiver do outro lado a família, que autoriza a nossa atuação, a doação não acontece.

    Além disso, no transplante de órgãos, sempre trabalhamos com dois polos: de um lado, a extrema tristeza de quem perdeu alguém querido; de outro lado, a extrema alegria de quem estava morrendo, quase sem esperança, aguardando um órgão.

    Então, trabalhar com transplante de órgãos acaba sendo uma forma de encontrar uma forma de ressignificar o sofrimento, a morte de uma pessoa. 

    Ou seja, para que qualquer transplante aconteça, é necessária uma corrente em que cada elo é uma etapa do processo. Se um desses elos se romper, nada feito. O transplante começa desde o paciente com morte encefálica. Feito o diagnóstico, é preciso investigar se ele não porta alguma doença que possa ser transmitida ao receptor. Em seguida, há uma conversa com a família. Se ela autoriza a doação, as equipes de hospitais com receptores elegíveis vêm buscar os órgãos. 

    Então, repare que trata-se de uma cadeia de produção, com eventos que precisam ser trabalhados com atenção para que o processo seja bem-sucedido. São vários especialistas envolvidos em todas as etapas e a gente que trabalha com a gestão do processo, é privilegiado por ter uma visão do todo em um processo relevante e muito dinâmico.

    FH: Como funciona a lista de transplantes no Brasil? 

    TT: O nome técnico da lista – que muita gente chama de “fila” – é Cadastro Técnico Único. Todos que se cadastram para esperar por um órgão inserem seus dados para que um sistema informatizado verifique compatibilidades entre doadores e receptores em potencial. Essa checagem vai desde o tipo sanguíneo até o porte físico dos envolvidos, passando por vários outros critérios.

    É que não adianta a compatibilidade sanguínea ocorrer se uma das pessoas pesa 40 kg e outra pesa mais de 100 kg, por exemplo. Fazendo uma comparação popular: eu não posso colocar um motor de Fusca em um caminhão e nem o motor de um caminhão em um Fusca.

    Então, temos todos esses critérios que são anatômicos, celulares, de compatibilidade de grupo sanguíneo etc. Quando ocorre uma morte encefálica, que é do sistema nervoso como um todo, mas popularmente é chamada também de morte cerebral, a família é consultada sobre a doação de órgãos. Se ela autoriza, são feitos testes sanguíneos e de identificação de doenças infecciosas para evitar transmissões para os receptores.

    Passando nesse teste, os dados clínicos do paciente são inseridos no sistema: peso, altura, tamanho do tórax, tamanho da circunferência abdominal etc. O sistema, então, identifica pessoas compatíveis com os órgãos daquele doador. 

    Nesse ponto, por exemplo, já fica mais fácil entender porque o Faustão ficou pouco tempo aguardando um órgão compatível. Ele é uma pessoa grande, com sangue tipo B, que só ocorre em cerca de 15% da população. Ou seja, por ele ser um tipo não tão comum entre a média da população, quando aparecesse um doador alto com esse mesmo sangue, naturalmente ele seria um dos primeiros a receber. Por isso que o coração que ele recebeu não foi para outro que talvez houvesse se cadastrado até antes. É preciso que haja compatibilidade entre os envolvidos. 

    E quem aponta a vez de quem receberá o transplante é o software da central, que fica dentro da Secretaria de Estado da Saúde. O SUS monitora e controla 100% dos órgãos em disponibilidade e não importa se o transplante é feito na rede privada ou pública. Ele vai puxar o paciente independentemente da fonte pagadora e sequer sabe a identidade de quem vai receber os órgãos.

    Atualmente, mais de 90% dos transplantes no Brasil são pagos pelo SUS. Isso faz do país o maior sistema público de transplantes do mundo.

    Em outros países, como os Estados Unidos, se você não tem dinheiro para bancar todos os custos envolvidos em um transplante, você nem entra na lista de espera. No Brasil, qualquer cidadão tem acesso ao cadastro e mesmo depois do transplante, os remédios imunosupressores que o paciente precisa tomar pelo resto da vida também são fornecidos gratuitamente pelas farmácias de alto custo do SUS.

    O SUS tem quatro programas que são modelos internacionais de gestão de saúde: vacinação, tratamento de tuberculose, tratamento de AIDS e transplante de órgãos. O Brasil organizou o sistema de transplante de um jeito que outros países do mundo se inspiram no nosso modelo.

    O caso do Faustão mostrou a confiabilidade do nosso sistema em que desde o Ministério da Saúde até os hospitais, dos gestores até os profissionais de saúde que executam o transporte dos órgãos e os transplantes, todos estão na mesma página, operando em conjunto para máxima eficiência do processo. 

    FH: Qual a vida útil de um órgão para ser doado? 

    TT: Chamamos essa “validade” de tempo de isquemia, que é o tempo em que ele pode ficar no gelo, fora de um corpo. Até ser transplantado e voltar a funcionar em outra pessoa, o rim dura até 48 horas; o fígado, até 24 horas; pâncreas, até 8 horas, pulmões, 8 horas; coração 6 horas. Obviamente, me refiro ao tempo máximo fora do corpo. Quanto menos tempo entre a morte encefálica e o transplante, melhor.

    Para garantir essa agilidade, contamos com helicópteros das forças públicas e aviões da FAB em todo o território nacional. Alguns rins, por exemplo, que tem o tempo de isquemia maior,  podem cruzar o Brasil, do Ceará até o Rio Grande do Sul. Para órgãos que não podem ficar tanto tempo no gelo, isso já vira critério para rodar a lista. Ou seja, um coração tende a ficar disponível para um receptor que esteja mais próximo do doador.

    FH: Quais são os órgãos mais transplantados e por quais deles há mais demanda? 

    TT: A lista de transplante renal é maior. E o número de transplantes, também. Temos mais de 30 mil pessoas na lista esperando por um transplante renal no Brasil. E quase 150 mil fazendo hemodiálise – ou seja, gente que precisaria de um rim também.

    Dentre os fatores que contribuem para que haja mais transplantes renais está o fato de o rim ser um órgão duplo (ou seja, a pessoa pode doar em vida e, se houver morte de um doador, o rim pode servir para dois receptores) e que dura mais tempo fora do corpo.

    Mas a defasagem entre a demanda e a oferta é grande. Nós só transplantamos 36% dos rins que deveríamos. Com fígados, nós transplantamos 33%. Os transplantes de coração são apenas 20% do que seria necessário e, de pulmão, somente 6%.

    FH: E como fazer as pessoas se engajarem mais na doação de órgãos? Existem estratégias para isso?

    TT: O primeiro passo é fazer uma gestão baseada em evidências. Então, acompanhamos muitos indicadores para mapear quais são as principais causas de não doação de órgãos no país. Por exemplo, 49% das famílias entrevistadas recusam a doação, ou seja, quase metade recusa. 

    Para melhorar esse índice, uma medida seria investir em campanhas de divulgação, conceder mais entrevistas como esta que estamos fazendo, ocupar os meios de comunicação relembrando as pessoas sobre a importância de doar.

    Mas a medida mais importante para aumentar o índice de famílias que aceitam doar, a meu ver, é a capacitação e qualificação dos profissionais de saúde. Se eu tivesse dez moedas, aplicaria nove delas nisso.

    É que boa parte da recusa familiar está relacionada a profissionais que poderiam ser melhor qualificados para trabalhar com doação e transplante de órgãos. É fundamental que o profissional saiba chegar e conversar com a família de uma maneira que seja, ao mesmo tempo, acolhedora e clara. Essa conversa com a família, num momento delicado, sensível, é crucial para o desfecho do processo. 

    Ao mesmo tempo em que esse papo deve esclarecer a importância dessa família permitir a doação dos órgãos, ela também precisa entender como funciona a lista, como o corpo será tratado etc. 

    São tantas questões envolvidas, desde religião até eventuais custos (que não há para a família doadora), que o profissional de saúde fazendo a interlocução, seja ele psicólogo, médico, enfermeiro, assistente social ou qualquer outro, precisa ter uma qualificação específica e adequada para isso. É preciso ter sensibilidade, acolhimento, um lugar específico para conversar e conhecimento completo sobre o sistema de doação de órgãos para responder as perguntas com exatidão.

    Portanto, é preciso treinar as pessoas que trabalham em UTIs e pronto-socorros dos principais hospitais do país, que é onde ocorre a maioria das mortes encefálicas. É importante que haja comunicação em massa, mas se pudermos investir mais em qualificação profissional o aumento de doações seria maior. 

    Não adianta o assunto estar na boca do povo, como no caso do Faustão, se as informações básicas na linha de frente, para a família que precisa decidir se doa ou não após a morte de um ente querido, não estiverem claras. Esse momento da conversa com as famílias potenciais doadoras é crucial e crítico para o aumento da oferta de doações de órgãos.

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